História
Num ano em que Adolfo Portela foi alvo de uma evocação e homenagem conjuntas, pelos municípios de Águeda e Fundão, no dia 19 de Março, com a inauguração da exposição “Além da Ponte”, que esteve patente até 19 de Abril, e com a representação de “A Noiva do João”, pela Orquestra Típica de Águeda, uma das formas de continuar a recordar o homem que dá nome à nossa escola é ler a sua obra. Da poesia ao teatro, passando pelos contos e crónicas, a obra deste ilustre aguedense, nascido em Recardães a 16 de Agosto de 1866, espelha bem a realidade da sua terra e as preocupações enquanto cidadão empenhado.
Nas páginas da sua obra perpassam, para além da vida quotidiana dos aguedenses, suas tradições, hábitos e costumes, preocupações com a necessidade urgente de instrução para os seus conterrâneos e para os portugueses, em geral, em finais do século XIX.
Para quem, como ele, concluiu em 1888 a licenciatura em Direito pela Universidade de Coimbra, seria uma dor de alma constatar que a sua realidade estava bem longe da dos portugueses que, na sua esmagadora maioria, permaneciam analfabetos a vida inteira. Dessa preocupação se faz eco nas páginas de Águeda, Crónica, Paisagens, Tradições, ao questionar-se: “Que outras e melhores desculpas hei-de invocar com que possa explicar o facto vergonhoso de, nos 18745 habitantes do concelho, haver, nada mais, nada menos, do que 14678 que não sabem ler nem escrever o seu nome”.
Não é de estranhar, portanto, que Adolfo Portela traga o assunto para as suas narrativas breves e apresente a escola como a chave do sucesso para quem quer atingir “um grandioso ideal”. Atrevemo-nos a transcrever um excerto da parte inicial do conto “O médico”, publicado nos seus “Contos e Balladas:
Havia no brilho do seu olhar profundo a austeridade viril duma longa concentração séria. O porte era majestoso – um porte digno de carta de conselho e duma tiradela de chapéu… A maneira correcta do seu dizer, a estatura épica dos seus pensamentos, o alisar do cabelo, a nonchalance do vestuário – uma profunda pouca importância às mesquinharias da vida – davam-lhe o tom extremamente sério de um Carlinhos já homem, acostumado à austeridade das coisas públicas, onde se cruzam sobrecasacas e se vendem consciências.
Os brinquedos dos bebés eram para ele a expressão chocha dum estilo almiscarado, tresandando a cueiro, e desculpável apenas na primeira infância da ciência da educação. Achava preferível à improdutiva distracção das classes nascentes – como ele costumava dizer - uma sólida educação de princípios, todo um firme fundamento de coisas sãs, sem falsos.
Ao olhar-lhe a cabeça, o bom do senhor cura exclamava:
- Seria assim a cabeça de Santo Agostinho?...
E deixava-se ficar contemplativo ante aqueles suaves cabelos loiros, que espreitavam alegremente sob a gorra azul bordada a âncoras escarlates.
Profundeza do olhar inteligente e a maneira superior do seu porte austeramente levantado.
Havia, naquele cérebro de criança-filósofo, a aspiração precoce dum grandioso ideal, um sonho augusto, que era como que o desfecho glorioso de uma vida austera de trabalhos, em luta com os preconceitos da educação do seu tempo.
Na suprema guerra levantada contra essa assustadora avalanche de preconceitos, Carlinhos começava por ter um profundo ódio à maneira geral de fazer adormecer as crianças à hora em que as galinhas recolhem.
E pensava:
- À noite – o período fadado para as concentrações sérias e dignas! O estudo, o trabalho… Lutarei contra meu pai, todos os preceptores, que entendam sujeitar-me à triste condição de ir para a cama ao bater das trindades…
E um dia que alguém notou que o Carlinhos trazia as pestanas queimadas, ele teve uma alegria verdadeira e tomou uma altivez proeminente, dizendo:
- Queimei-as na banca do estudo!
Adolfo Portela, Contos e Balladas 1886-1889, Porto, Typographia Elzeviriana, 1891